Olhando o luar da janela da minha casa veio-me à ideia como odorava os serões no Alentejo da minha meninice. Aqueles que eram passados na casa dos caseiros. De inverno, dentro da chaminé, com o lume de lenha de azinho no chão aquecendo-nos o corpo e reconfortando-nos a alma. Dispostos em meia-lua e sentados em pequenas cadeiras de madeira com fundo de buinho, com as panelas de barro com água a aquecer para se lavar a loiça e a cara nas manhãs a tiritar de frio, sem faltarem os feijões a cozer em lume brando para matar a fome no dia seguinte. Lá fora, o vento zumbia de meter medo e a chuva fustigava o casebre fazendo-nos aconchegar uns aos outros como os rebanhos na hora do acarro.
O pagode começava ao anoitecer e às nove era hora da recolha, pois o alvorecer começava com o cantar dos galos, bem cedo como se imagina.
De verão buscava-se, em vão, a brisa ao relento. O bafo quente que eclodia da terra era sossegado pelo chão de pedra que nos consolava com a sensação efémero de frescura. Por fim, quando a aragem começava a refrescar era hora da dormida. Os mais novos achavam que de martírio já tinham a sua dose, então, já que tinha de ser, pois que dormissem a contar as estrelas. E assim era.
Agora, ainda consigo ver as estrelas da minha janela, mas já não sinto o cheiro das pessoas, dos animais, do arvoredo, já não sinto as lambidelas dos cães a acariciarem-me o rosto, num último adeus até amanhã.
Sem mais delongas, que se faz tarde, e a vossa paciência tem limites, recordo-me, a propósito, de um artigo que escrevi já a alguns anos aquando das polémicas touradas em Barrancos e que me permito recordá-lo e partilhá-lo com vocês:
Apesar de se realizarem já legalmente não esgotam o assunto que, a meu ver, tem raízes profundas, merecendo uma reflexão ponderada.
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que o homem, inserido no mundo natural a que também pertence, é o maior predador de todos os animais. Esta constatação não nos deve envergonhar, antes pelo contrário. A inteligência de que somos dotados permite-nos utilizar o engenho, a arte e a astúcia como uma arma de dominação ao serviço da sobrevivência e valorização da espécie. Tornamo-nos, assim, em seres superiores e por isso com responsabilidades acrescidas
A sobrevivência da espécie humana exige-nos, no entanto, que os recursos ao nosso dispor não sejam dizimados e que sejam explorados de forma equilibrada, sob pena de comprometermos o futuro, tornando o processo insustentável.
A continuidade dos seres vivos obriga à satisfação das necessidades físicas elementares, nomeadamente as alimentares, mas devido à sua inteligência e ambição os seres humanos tornam cada vez mais imprescindíveis os actos lúdicos. A relação do Homem com a natureza tem presente a tendência desta dualidade complementar, isto é, à necessidade de explorarmos a natureza junta-se a exigência de a conservarmos para nosso regalo. É, aliás, a necessidade e o desejo de usufruirmos o prazer como tal e o talento de o explorar um dos factores que, a meu ver, nos distingue das outras espécies. A criação artística, o tipo de apetência sexual ou o deleite da paixão ajudam a compreender estas particularidades e esta capacidade dos seres humanos.
A matança do porco, as corridas de toiros, a caça e a pesca desportiva são exemplos que invocam a sobrevivência da espécie humana numa perspectiva mais global: exerce-se o poder de predador num contexto lúdico. O prazer não está, ao contrário do que muitos julgam, no acto per si de matar, mas sim no conjunto de representações simbólicas ritualizadas, na interacção de sensações subjectivas, na partilha de referências comuns e na comunhão de emoções e afectos.
Outra objecção que igualmente merece meditação é o argumento do prolongamento desnecessário do sofrimento infligido aos animais. Quando os praticantes das actividades referidas estão tecnicamente preparados, são competentes, respeitadores dos regulamentos vigentes e sem patologias, digamos, desviantes, e, portanto, são bem formados, o sofrimento imposto aos animais não é mais do que o estritamente necessário. Todas as outras actividades enunciadas devem ser analisadas e compreendidas à luz dos mesmos princípios.
"Os defensores dos animais" a que me refiro invocam concomitantemente que estão a defender os direitos de quem está impossibilitado de o fazer. A questão de fundo não é essa. Eu também penso que os animais irracionais têm direitos. A diferença é que olham para estes como se fossem da mesma espécie e, por isso, os valores pelos quais se regem nas suas análises são os inerentes aos da sua própria espécie.
Os mais sofisticados criam o conceito da "morte como espectáculo" como reduto da sua argumentação reprovadora. Em primeiro lugar, não é disso que se trata, em segundo não é um problema que deva preocupar as vítimas, julgo eu.
A questão fundamental subjacente a esta temática é a real conflitualidade entre a cultura rural e a urbana. De grosso modo, as diferentes perspectivas reflectem uma dicotomia entre estas duas realidades. No mundo genuinamente rural respeita-se o meio ambiente e tratam-se com dignidade e carinho os animais com base num sistema normativo que os diferencia.
Nas nossas comunidades rurais é reprovável matar certos animais, nomeadamente os cães e não se matam, por exemplo, as ovelhas a tiro. Uma lebre não é criada como se fosse uma galinha e o modo de as matar também não é o mesmo. As diferenças no maneio, na preservação e no ritual da morte depende antes de tudo da espécie e dentro desta da raça.
Na cultura rural existem muitos traços que actuam como forças inibidoras de um real desenvolvimento, de uma abertura de espírito, de um sentido de modernidade e de tolerância que devem ser alterados, mas associar as actividades em causa a comportamentos "bárbaros" revela ignorância, arrogância, complexos de superioridade de quem quer impor a toda a sociedade a sua própria cultura, a urbana. Por outras palavras, trata-se de etnocentrismo.
Rematando, que a faena já vai longa e o director(a) de corrida já prepara os avisos, deixem-me dizer-vos que não sou caçador, nem tão pouco pescador, muito menos toureiro. Sou apenas um lidador enfrentando o labirinto dos mistérios da vida e da morte num ruedo que tem como centro a minha aldeia, mas como limite o que está para além do que a vista alcança.
Joaninha, já tinha percebido que pintavas. É bonito. Não sou conhecedor de pintura, mas aprecio as coisas belas. Emocionam-me. Despertam-me os sentidos, e os sentimentos. E o belo pode estar em qualquer lado, em qualquer coisa, em qualquer de nós. Pode ser um gesto, um olhar, uma paisagem, uma frase, um sentimento, uma obra de arte. Pode ser matéria, mas também não o ser.
O que seria o mundo e a vida sem o sentido estético das coisas? Uma aberração de certeza, uma monotonia seguramente. Temos todos o mesmo sentido estético das coisas? Obviamente que não. A apreciação e valorização estética são consequência da cultura (no sentido antropológico e sociológico) de cada um. É uma interpretação livre e já democratizada, mas, atenção, há limites, melhor, critérios: "nem tudo o que brilha é ouro".
Terei muito gosto em visitar a tua próxima exposição.
armando
Desculpem o tamanho do texto, mas deu-me para aqui. Só o envio porque sei que ninguém é obrigado a lê-lo.